3 de abril de 2020

Escritura, Espírito e Experiência- Um diálogo com Bernardo Campos




Por Everton Edvaldo

Introdução: Há alguns dias, escrevi um artigo intitulado “Construindo uma Sólida Hermenêutica Pentecostal”. Nele, eu mostro como os principais apologistas pentecostais mostraram a necessidade de aperfeiçoarmos a forma como defendemos os nossos distintivos, ou aquilo que nos faz singular nesta presente era. As reações foram diversas, alguns receberam de forma receosa, mas boa parte dos leitores, se conscientizaram do que foi dito e entendeu a proposta do ensaio que não esgota a temática. Um assunto ou método novo[1] costuma assustar certas pessoas, por isso, é extremamente natural que haja alguém que o resista.  Por outro lado, nós pentecostais não devemos cair no erro de achar que produzimos tudo que já tínhamos que produzir no cenário teológico ou que o que já foi produzido não pode ser aperfeiçoado ou até mesmo atualizado. Esse tipo de postura seria uma espécie de “arrogância” que não deveria existir em nenhuma comunidade cristã, principalmente na Pentecostal. Particularmente, não costumo ver com bons olhos, pacotes teológicos fechados que nunca podem ser colocados sob escrutínio, crítica e diálogo, tendo em vista que a teologia é uma ciência em eterno progresso. Por isso, quando alguém se propõe a lançar uma plataforma diferente das que existem, procuro primeiro entender o que está sendo dito pelas lentes de quem a defende, a fim de que não cometa injustiças e crie espantalhos sobre o mesmo. Foi o que fiz quando li a obra “Hermenêutica do Espírito- Uma Proposta para a Hermenêutica Pentecostal”, escrito pelo Dr e Pr Pentecostal Bernardo Campos. Neste pequeno artigo, pretendo fazer uma análise da obra, mostrando pontos positivos e ferramentas que podem agregar ao nosso contexto como um todo. Vamos lá?

I-             UMA PROPOSTA AMBICIOSA, PORÉM, INACABADA

Sim, você não leu errado, a obra em questão é uma proposta ao Movimento Pentecostal. Como bem sabemos, uma proposta é um convite, sugestão ou uma oferta, neste caso, à Hermenêutica Pentecostal, não a aniquilação ou negação de tudo que já existe antes. O Dr. Bernardo deixa logo claro, desde o início da obra, que esta proposta primeiro deve ser entendida como ela é, mas não no sentido denominacional ou confessional. (CAMPOS 2018, p. 8) Ou seja, não espere que essa obra caiba dentro da sua denominacionalidade, pois essa não é sua intenção.

Segundo, esta obra não é um rompimento total com os métodos que já foram elaborados, antes é uma proposta teórica que “sugere dar um passo a mais depois da exegese e da hermenêutica tradicionais.” (CAMPOS 2018, p. 8) Atente bem para a expressão “proposta teórica” que supõe “não somente o manejo das ferramentas exegéticas e das normas de interpretação. Exige também uma análise da realidade socio-histórica, a iluminação do Espírito Santo para captar a profundidade, o sentido mais pleno das Escrituras, assim como a arte de conectar temas do Antigo e Novo Testamento por analogia para encontrar sentidos teológicos.” (CAMPOS 2018, p. 8) Desde já eu gostaria de deixar claro que não concordo com tudo que o autor escreve, nem mesmo com suas associações políticas, muito menos com todas as fontes que são usadas pelo autor.

Por outro lado, confesso que admiro a ousadia do Dr. Bernardo para suprir algumas deficiências que não foram respondidas à altura no passado e que mostra na prática, que o pentecostalismo cumpre bem a máxima cristã de procurar unidade na diversidade. Sim, uma coisa que não falta no Pentecostalismo é diversidade. Como toda obra humana, a proposta do Bernardo possui suas próprias limitações e esgotamentos e porque não dizer percalços tendo em vista que quando se é pioneiro em propor algo, o risco de cometer um deslize é gigantesco comparado àqueles que terão o papel de julgar, avaliar, aperfeiçoar ou continuar. Portanto, penso que há aspectos positivos na obra e o por outro lado, vejo a proposta como inacabada. Sendo assim, esse artigo não é para rechaçar a abordagem, como esperaria alguns, mas para tentar dialogar com a proposta. O autor está convicto de que “o Espírito Santo completará e encherá os vazios que este livro pode deixar e que nos livrará de erros e falsificações da unção que Deus tem derramado em nossos corações para conhecer e reconhecer o Messias.” (CAMPOS 2018, p. 15)

II-            A RELAÇÃO ENTRE O INTÉRPRETE E A EXPERIÊNCIA

Apesar da experiência se sobrepor à teologia no Movimento Pentecostal, o papel que ela ocupou dentro da hermenêutica desenvolvida pelos seus sistemáticos foi quase sempre marginal. Os antigos teólogos pentecostais viram (à sua época com razão) com maus olhos qualquer participação da experiência no processo interpretativo. Paralelamente a isso, os pentecostais leigos já praticavam há décadas o que mais tarde seria colocado em pauta nas recentes discussões sobre o pentecostalismo. Vários teólogos pentecostais (outros mais, outros menos) estão levando em consideração hoje o papel que a experiência ocupa na hermenêutica pentecostal. Bernardo Campos é um deles e sua obra, foi escrita para crentes em geral, mesmo para aqueles que não tem uma formação teológica profissional, mas que têm sede de conhecer tudo que é relativo ao Messias vindouro e a ele pessoalmente. (CAMPOS 2018, p. 13)

Uma das primeiras coisas que Bernardo faz questão de fazer é definir então o que seria uma Hermenêutica do Espírito. Para ele, “é a interpretação da Bíblia e dos acontecimentos históricos com a direção do Espírito Santo, cuja finalidade última é reconhecer o Messias, autor de nossa salvação. É uma interpretação vital dos acontecimentos que apontam para o Messias.” (CAMPOS 2018, p. 14)

Vejamos, se nas antigas abordagens, havia muito espaço para a questões gramaticais, léxicas, sintáticas e literárias do texto bíblico, na proposta do Bernardo, a direção do Espírito Santo no processo interpretativo ganha o seu próprio espaço, dessa vez, na direção do processo, mas não anulando o aspecto técnico do estudo.

Contudo, por que é tão importante falar de uma Hermenêutica do Espírito nos dias de hoje? Porque há muita coisa da experiência religiosa que uma pessoa natural com “os cânones de sua racionalidade moderna, é incapaz de entender ou explicar.” (CAMPOS 2018, p. 18) Além disso, essa atividade hermenêutica instrumentaliza aos crentes a capacidade de “explicar seu mundo e com isso, sua própria identidade religiosa e social.” (CAMPOS 2018, p. 18)

Para Campos, a experiência com o Espírito Sando, imerge o cristão numa nova dimensão espiritual, no entanto, esta dimensão e a compreensão da fé estão intimamente ligadas com as Escrituras e a experiência do Cristo ressurreto. Eis a Hermenêutica do Espírito. (CAMPOS 2018, p. 20) Campos usa a experiência dos discípulos e apóstolos como paradigma para todas as gerações que imergem nessa nova dimensão, no entanto, até que ponto essa correlação pode ser precisa, é algo que deixo para outros colegas trabalharem.[2] Mas mesmo se não puder ser feito uma ponte direta entre as experiências particulares dos discípulos e nós, isso não anula a urgência de uma hermenêutica do Espírito.

Bernardo propõe um método de intepretação “da realidade a partir de uma compreensão espiritual das Escrituras. Em outras palavras, uma leitura da realidade desde a iluminação do Espírito Santo em referência direta às Sagradas Escrituras ou com a ajuda delas. Palavra e Espírito como um binômio obrigado para salvaguardar do erro ou de cair em uma subjetividade incontrolável.” (CAMPOS 2018, p. 21) Creio que essa co-dependência entre Espírito e Escritura é indispensável, principalmente para avaliar ou interpretar fenômenos que não foram abordados de forma exaustiva pela Escritura, como é o caso do mundo dos espíritos. No Cristianismo, há mais mistérios sobre anjos e demônios do que certezas. O Bernardo trabalha a ideia do discernimento dos espíritos como um elemento que ilustra bem essa questão. (CAMPOS 2018, p. 22) Uma vez que a própria Escritura não esgota o assunto, podemos discernir muita coisa do mundo espiritual através da experiência com o Espírito, até porque nós pentecostais cremos que Deus não parou de revelar-se ao ser humano.  

Campos explica: “Cremos em uma revelação de Deus aberta, mas sempre iluminada pelas Sagradas Escrituras.” (CAMPOS 2018, p. 23) No entanto, não confunda revelações atuais do Espírito com a própria Escritura. Campos deixa claro: “Os cristãos afirmam que as Sagradas Escrituras são e contém a Palavra de Deus revelada aos homens através da história.” (CAMPOS 2018, p. 23) Toda construção teórica de conhecimento religioso deve tê-la como ponto de partida. (CAMPOS 2018, p. 23) Logo, nosso ponto de partida é um conhecimento revelado no sentido de que se sustenta na revelação que foi escrita pelos escritores sagrados ou hagiográficos. (CAMPOS 2018, p. 24)

No entanto, o nosso cotidiano exige uma série de respostas que satisfaça a sede de sentido que temos. Sendo assim, naturalmente, nos processos exegéticos o ponto de partida tem sido a nossa situação vital e não a do autor do texto. (CAMPOS 2018, p. 25) Não corramos o risco de interpretar isso de forma errada. O que Bernardo está dizendo é que o que nos leva à Escritura não é simplesmente a situação em que viveu o autor bíblico, mas sim as nossas situações e demandas. Ninguém se aproxima das Escrituras sem uma situação própria envolvida. Alguns porque vão pregar, outros porque vão se alimentar da Palavra de Deus e assim por diante. A própria história do início do movimento pentecostal tem pouco disso, quando o Charles Fox Parham pede a seus alunos que procurem uma evidência no livro de Atos do batismo. Os alunos já não eram leitores da Bíblia? Sim! Mas até então não tinham percebido que havia na Escritura uma evidência do Batismo. Quem disse a eles que precisava haver uma evidência e ela estava nas Escrituras? Parham! Assim como a ocasião faz o detetive, logo trataram de investigar essa tal de evidência e acharam: o falar em línguas.

Bernardo Campos alerta que isto não significa “colocar em segundo plano as Sagradas Escrituras. É só reconhecer que sempre partimos da nossa existência e desde ali, influídos pela cultura com seus acertos e desacertos, vamos buscar na Bíblia uma resposta de Deus para dar-lhe sentido à nossa vida.” (CAMPOS 2018, p. 25) É nesse sentido que a experiência de cada um joga um papel importante e até determinante no processo de interpretação da realidade significativa e peculiar. (CAMPOS 2018, p. 27)

Mas o que é essa tal da “experiência”? Para Campos, é uma “forma de conhecimento ou habilidade derivadas da observação, da participação e da vivência de um evento ou proveniente das coisas que sucedem na vida.” (CAMPOS 2018, p. 28) Esse conhecimento é “objetivo quando provém das Escrituras e subjetivo, pessoal, quando se apropria do sentido interpretado.” (CAMPOS 2018, p. 28)

Campos segue seu texto e fala sobre algo que geralmente é ignorado por muitos hermeneutas evangélicos: a presença da eisegese no processo de interpretação. O autor vê dois sentidos na expressão: um positivo e outro negativo. Para ele:

‘...Todo intérprete de maneira inconsciente introduz na compreensão do texto bíblico questões e perspectivas contemporâneas que nem sempre foram consideradas pelo hagiógrafo ou escritor sagrado. É o aspecto subjetivo da interpretação da qual não nos podemos livrar, mas sim devemos controlar. É a nossa vivência o que nos permite aproximarmos ao texto e encontrar nele ‘sentidos’ que, desde outras experiências, ou da ausência delas, não se visualizaram. Não obstante o que foi afirmado, a eiségeses tem também um sentido negativo quando pretende dizer ao texto o que o texto não quis dizer. Isto é deplorável na interpretação bíblica. Uma eiségesis sem exegese conduz ao erro e a uma perigosa e irracional arbitrariedade.”  (CAMPOS 2018, p. 31)

Particularmente creio que há um certo grau de perigo em conceder muito poder ao intérprete, no entanto, não há como negar que não existe aproximação do texto bíblico sem pressuposições. As pressuposições são intrínsecas ao ser humano, portanto, é utópico e inútil querer negar que isto aconteça, ou até mesmo tentar anular. O máximo que podemos fazer é minimizar. Pense comigo: por que pessoas usando o mesmo método (MHG) chegam a conclusões tão diferentes? Pelo simples fato de carregar consigo pressuposições e experiências para o texto. Vamos anular a experiência? Não, até porque é impossível! Neste caso vamos trabalhá-la.

Por outro lado, creio que o perigo que acompanha a concessão de poder ao intérprete precisa de reguladores. Bernardo Campos fala de alguns:

1.    Aquilo que é subjetivo a nós precisa ser controlado.

2.    Devemos nos abster da prática de dizer ao texto o que o texto não quis dizer.

3.  Interpretar o texto sem exegese conduz ao erro e a uma perigosa e irracional arbitrariedade.

Eu entendo a preocupação de Bernardo quando diz que “uma pura exegese, sem uma experiência que a motive, é simplesmente uma leitura técnica, como feita por uma máquina ou um literato bem informado. Uma leitura sem sentido específico para o intérprete. O estudo científico da Bíblia é necessário, mas não é suficiente. Necessitamos interpretar com o Espírito para encontrar seu sentido profundo e imediato a nós.” (CAMPOS 2018, p. 31) Eu gostaria de destacar dois aspectos relevantes a partir desse trecho:

Primeiro, uma leitura tecnicista, mas sem ser regada pelo Espírito Santo pode levar ao mero formalismo. Creio que muito daquele racionalismo e formalismo que precedeu o liberalismo teológico nas igrejas da Europa foi devido a isso.

Segundo, os pentecostais leigos há décadas leem a Bíblia dessa forma que o Bernardo categoriza. A grande massa dos nossos membros, sequer foram à escola direito, mas foram pessoas amantes da Bíblia e do próprio Deus. Sem as ferramentas técnicas da exegese e dos métodos Histórico-Gramatical e Histórico-Crítico, os pentecostais foram vitalizados pelo contato com o próprio Espírito de Deus que em tudo os guiava em toda a verdade. Claro que muitos deles erraram no processo de interpretação, mas pelo uso inadequado da experiência e que agora estão tendo a chance de corrigir isso, sem levar em conta o aspecto extremamente pessimista com relação à experiência nos antigos métodos hermenêuticos.[3]  A teologia Sistemática Pentecostal deixa claro que “a primeira fonte interna de autoridade é a experiência. O indivíduo relaciona-se com Deus no âmbito da mente, da vontade e das emoções. Considerando a pessoa como uma unidade, os efeitos sofridos em qualquer um desses âmbitos são sentidos, ou experimentados, nos demais, quer subsequente quer simultaneamente.” (HORTON 2005, p. 48)

Baseado nisso, Bernardo explica que os avivamentos geram mudanças nas estruturas denominacionais e provocam também mudanças nos paradigmas de conhecimento. Essa mudança de interpretação configurada pelos movimentos do Espírito, concede às experiências individuais ou coletivas o poder de enriquecer o sentido do texto e o fazer polissêmico (com muitos sentidos). “Isso quer dizer que, à luz de novas experiências, os intérpretes encontram nos textos bíblicos novos sentidos que não estavam claros em uma leitura anterior.” (CAMPOS 2018, p. 34) Para ele, uma “leitura da Bíblia e dos acontecimentos históricos à luz da experiência no Espírito, produz novos sentidos para a vida. A isso chamam hoje muitos intérpretes, um rhema, isto é uma Palavra de Deus nas Escrituras que adquire um novo sentido em nossa vida e que, ao apropriarmos, se faz carne em nós produzindo novos conhecimentos e novas práticas.” (CAMPOS 2018, p. 35)

No meio reformado, David I. Starling foi um dos autores reformados a chegar bem perto do que o Campos escreveu. Ao falar sobre o uso da Alegoria usada por Paulo em Gálatas, ele diz que as múltiplas conexões intertextuais criam espaços para que leitores posteriores encontrem muitos e variados pontos de conexão imaginativa entre a história de Agar e a sua própria e que essa história constrói uma ponte para os leitores cuja situação e experiências, há elementos semelhantes. (STARLING 2019, p. 156) Segundo ele, a “capacidade de uma personagem como Agar de tornar-se ‘muitas coisas para muitas pessoas’ não significa que os contextos originais nas quais os escritores, compiladores e leitores da Escritura entenderam os textos bíblicos perdem-se na irrelevância em prol de propósitos de interpretação teológica.” (STARLING 2019, p. 157) E garante que “há espaço para ampla diversidade de leituras reverentes e atenciosas que estão atentas ao potencial do texto bíblico para gerar correspondências imaginativas entre o mundo do texto e o mundo do leitor.” (STARLING 2019, p. 157) E por fim, esse tipo de leitura “tem um lugar próprio na igreja, e não no mundo acadêmico.” (STARLING 2019, p. 157)

Bernardo também desenvolve o conceito de que a experiência deve estar condicionada dentre outras coisas, à inteligência espiritual, uma expressão que representa a sabedoria do alto, visão holística e espiritual, para além do corpo e das emoções, contudo, trabalhando em nosso ser harmonicamente com a inteligência racional e emocional (CAMPOS 2018, pp. 36,37)

Pois bem, se você me perguntar se eu concordo com tudo que o Bernardo ensinou nesse quesito, talvez a resposta seja “não”, mas por outro lado, não podemos deixar de ignorar que a experiência precisa sim encontrar o seu devido espaço dentro da hermenêutica pentecostal. Se há arestas na abordagem do Campos, isso é outra história, mas se existirem, não anulam a questão geral levantada por ele. Outra coisa que não pode ser desprezada é a questão do Espírito Santo como alguém dirige o intérprete da Bíblia, algo inclusive que a Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil confirma quando diz que nós “a interpretamos sob a orientação do Espírito Santo, observando as regras gramaticais e o contexto histórico e literário.” (SILVA 2017, p. 29)

III-          A RELAÇÃO ENTRE O INTÉRPRETE E O PARÁCLETO

Outro ponto trazido pelo Bernardo diz respeito ao relacionamento do cristão com a Hermenêutica do Espírito. Para ele, há passagens na Bíblia em que foram aplicadas a Hermenêutica do Espírito, uma espécie de atualização concreta e vital do sentido da Escritura para revelar o Messias. (CAMPOS 2018, p. 41) Foi pela falta dessa experiência que os judeus não reconheceram Jesus como messias e rejeitaram inclusive, o evento do Pentecostes.

Campos faz questão de deixar claro que a Hermenêutica do Espírito tem um óbvio agente: o Paracletos que fala de Cristo. (CAMPOS 2018, p. 42) Ou seja, essa hermenêutica, diferente do que alguns pensam, não é centrada no leitor, mas no Espírito que aponta para Cristo e cuja hermenêutica investiga pelo Espírito, aponta para a manifestação de Cristo na história dos homens. (CAMPOS 2018, p. 43) e é essa mesma hermenêutica que nos livra do espírito do erro através do discernimento que é extremamente necessário nesse processo. (CAMPOS 2018, p. 45)

Ao mesmo tempo que o discernimento do Espírito é necessário, ele precisa de um regulador. E qual é? Bernardo responde: “O discernimento é pelo Espírito, mas se alimenta da Palavra de Deus.” (CAMPOS 2018, p. 46) e diz mais que toda Hermenêutica do Espírito orienta para o Messias vindouro. (CAMPOS 2018, p. 46) Se não orienta para o Messias, caia fora! Campos ensina que somente uma Hermenêutica do Espírito pode nos livrar de ser induzido ao erro e reitera que as Escrituras forma a base do discernimento (CAMPOS 2018, p. 47) pois quando não há base objetiva, senão quando o todo é subjetivo, não há de onde obter verdadeira segurança. (CAMPOS 2018, p. 48)

Além disso, “como cristãos, unicamente podemos ter segurança quando for medido ou examinado um assunto cuidadosamente à luz da Bíblia, nosso prumo, mas também iluminados pela certeza que nos dá o Espírito de Deus em nosso interior.” (CAMPOS 2018, p. 48) Aqui não podemos cair no mesmo erro de alguns críticos do Quadrilátero Wesleyano[4] de supor que a experiência está sendo colocada no mesmo patamar de autoridade da Bíblia. A relação entre experiência e Bíblia não é equilateral, pois ela é nosso prumo. E por ela ser nosso único prumo, que podemos crer na iluminação garantida do Espírito sobre o intérprete.

Além do discernimento, Campos destaca a questão da unção do Espírito. Ele explica que o propósito da unção em nós em é em primeiro lugar ensinar. A unção interna nos ensina todas as coisas e nos livra da mentira do mundo. (CAMPOS 2018, p. 51) Todavia, seu propósito não se resume a isso, mas também a nos guiar em toda a verdade mediante o testemunho interior, bem como em terceiro lugar, nos ajudando a desenvolver o caráter de Cristo (CAMPOS 2018, p. 51), além de claro, nos capacitar para o desenvolvimento do ministério e nos dar um poder sobrenatural. Sem ela, nosso ministério será ineficaz e sem brilho. (CAMPOS 2018, p. 52)

Mas uma coisa que me chamou a atenção na abordagem do Campos, é que ele não restringe a Pentecostais o desenvolvimento de uma hermenêutica do Espírito. Para ele, todos os cristãos têm a iluminação do Espírito para compreender as Sagradas Escrituras e conhecer qual é a vontade de Deus e que todos os verdadeiros cristãos estão capacitados para desenvolver uma hermenêutica do Espírito e reconhecer sua presença. E mais: não é qualquer tipo de unção, é a unção do santo, isto é, de Cristo Jesus. (CAMPOS 2018, p. 52) Através dela, reconhecemos a vinda de Cristo em carne para redenção do ser humano. Ela também empodera o cristão para a missão na linha do Messias. Além disso, Campos também diz que o Espírito é o ator principal na vida os crentes de todos os tempos, sempre glorificando a Cristo. (CAMPOS 2018, p. 53)

Um momento clímax da obra pode ser notado quando Campo nos alerta sobre as falsificações e imitações da unção. Ele diz:

“Em nosso desejo por buscar a unção de Deus podemos cair em desequilíbrios e manipulações que nos induzirão ao erro. Alguns pregadores são tão ousados que oferecem sua unção, como mercadoria ou como selo de seu apostolado.” (CAMPOS 2018, p. 54)

E alerta que a “vida no Espírito por si só é um terreno escorregadio, se não busca fundamentar-se das Sagradas Escrituras. Há falsificações e encantamentos do diabo. É atrativa e são fáceis de confundir os motivos que nos movem a ela. Na ansiedade por ter manifestações em nossos cultos e querer que ocorram coisas espetaculares que impressionem os incrédulos, podemos forçar a ação do Espírito, e abrir portas para outros espíritos. Podemos produzir experiências extrassensoriais e confundi-las com a obra do Espírito. Ou talvez queiramos imitar a unção dos outros, produzir seus resultados e colocar-nos como portadores do avivamento.” (CAMPOS 2018, p. 55) É de suma importância que Campos deixe isso bem claro, pois se livra das más interpretações de alguns, de que ele reconhece como genuína toda e qualquer experiência religiosa. Isto não procede...

IV-          A RELAÇÃO ENTRE O INTÉRPRETE E A ESCRITURA

Embora já tenhamos falado acima um pouco dessa relação, precisamos falar de como Bernardo levanta a questão para nós. Para ele, a unção do Espírito permitiu que Jesus atualizasse concretamente o sentido de Isaías 61, ressignificando o cumprimento no seu próprio ministério (CAMPOS 2018, p. 56). Isto certamente foi verdade não somente no ministério de Jesus, mas também dos apóstolos. Mas talvez o link que ele faça conosco precise de mais aprimoramentos.

Campos se apropria da Hermenêutica usada pelos autores bíblicos para falar de uma “hermenêutica fundante que permite redimensionar o sentido escritural desde um contexto novo (na sinagoga). Em outras palavras, permite discernir, por ação do Espírito de Deus, um sentido profundo (um sensus plenior) nas Escrituras e ver na história um plus.” (CAMPOS 2018, p. 56) É claro que o sensus plenior existe e é bíblico, no entanto, ele foi um fenômeno próprio dos personagens inspirados pelo Espírito Santo. A pergunta que fica é: será que esse tipo de frente hermenêutica é concedido àqueles que são iluminados pelo Espírito Santo? Ou somente aos que foram inspirados? A Escritura parece não responder essa pergunta.

Porém, Bernardo pode ter encontrado uma pista em Pedro, o primeiro teólogo do pentecostes. Ele seria o primeiro dos apóstolos e desenvolver uma Hermenêutica do Espírito quando relê o evento do Pentecostes in situ como o cumprimento das profecias de Joel. A profecia de Joel foi discernida por Pedro como se cumprindo naquele dia, mesmo que o texto original apontasse para o terrível dia do SENHOR. (CAMPOS 2018, p. 62) Seria a experiência de Pedro programática para todos os cristãos? O autor crê que sim, mas eu particularmente ainda não fiquei convencido. Contudo, confesso: a tensão é real! Bernardo garante: “creio que Deus- no poder de seu Espírito- nos tem dotado de uma capacidade espiritual para entender, interpretar, conhecer, reconhecer, profetizar, descobrir sentidos profundos; encontrar águas da vida, em poços naturais. Temos a mente de Cristo. Temos uma inteligência espiritual.” (CAMPOS 2018, p. 63) O máximo que o Pentecostal John R. Higgins chegou foi de dizer que há um sentido contínuo nas promessas de João14-16 a respeito da orientação e ensino a serem ministrados pelo Espírito Santo, mas não trazendo uma nova revelação, mas trazendo novo entendimento, nova compreensão, nova iluminação. (HORTON 2005, p. 118)

Campos prossegue com sua abordagem dizendo que toda “hermenêutica, produto de uma exegese já assumida, deve contextualizar e fazer-se carne até levar a ações concretas na vida cotidiana.” (CAMPOS 2018, p. 63) Eu concordo com ele, principalmente quando diz que “vários acontecimentos e experiências espirituais em nossos dias requerem uma interpretação no Espírito ou uma HDE.” (CAMPOS 2018, p. 64)

V-           O INTÉRPRETE E O LEGADO DO PENTECOSTES

Para Bernardo, somos continuadores do Pentecostes. Nas suas palavras: “Desde esta óptica, a experiência pentecostal tanto antiga como atual, é uma experiência genuína do Espírito Santo em uma comunidade de crentes que se auto definem como ‘pentecostais’, isto é, continuadores da experiência de Pentecostes. (...) essa experiência de Pedro, repetida pelos cristãos ao longo dos séculos, tem dado lugar ao que chamado de Pentecostalidade. Uma construção teológica que opera como um critério epistemológico para falar da vocação de universalidade da igreja, e que, como categoria, permite superar a aporia da nova, mas precária historização e institucionalização dos Pentecostalismos. É, ao mesmo tempo, uma notae [marca] da igreja.” (CAMPOS 2018, p. 69)  É difícil negar que isso seja verdade e simplesmente continuar crendo que todo o evento do Pentecostes é programático, menos a hermenêutica usada por Pedro para validar a experiência ali concedida. Mais difícil ainda é acreditar que seja verdade e lidar com as tensões de um intérprete que pode, pelo Espírito Santo, atualizar passagens das Escrituras. Por outro lado, vejo um aspecto válido disso tudo que é a questão da contextualização que certamente é algo que acontece.

Campos ainda ensina que a pentecostalidade é “assim uma experiência universal que expressa o acontecimento de Pentecostes em sua qualidade de princípio ordenador da vida daqueles que se identificam com o avivamento pentecostal e, por ele, mesmo, constroem desde ali uma identidade pentecostal” (CAMPOS 2018, p. 70) e que o “movimento pentecostal é o produto de avivamentos, ou melhor, a continuidade de vários outros avivamentos antecedentes. Nenhum avivamento é estático ou parecido a outro. Cada avivamento é único. Em geral um avivamento é gerador de experiências novas e até provoca uma revolução nas pessoas e no entorno. (...) Uns se adaptam, outros resistem. O dilema é adaptar-se ou morrer. (...) Quando um avivamento é genuíno, elimina resistências e envolve os que se dispõem (os que se abrem ao Espírito) em um manto de paz e tranquilidade de espírito. Produz-se arrependimento, convicção de pecado, zelo santificador, retorno à Palavra de Deus, assim como uma sede de Deus e de sua presença, aparte do gozo e alegria que correm como rios, e um sem fim de manifestações extraordinárias.” (CAMPOS 2018, p. 71)   

Sendo assim, somos convocados a continuar o legado do Pentecostes, na convicção de que o taumaturgo celestial irá operar hic et nunc (aqui e agora) através de nós.

VI-          A RELAÇÃO ENTRE O INTÉRPRETE E O SEU MUNDO ESPIRITUAL

Os últimos dois capítulos da obra do Campos são uma tentativa de aplicar ou elucidar na prática como a hermenêutica do Espírito pode ser útil e atuar, em especial em duas áreas: batalha espiritual e sonhos. Por exemplo, ele acredita que se requer “uma hermenêutica do Espírito sustentada sobre uma feliz combinação entre princípios de exegese bíblica e experiência. Unicamente assim poderíamos fazer aproximações ao ‘mundo’ espiritual, já que só mediante uma metodologia teológica, crítica e racional, não poderíamos aceder. Requer uma Hermenêutica do Espírito e algumas categorias novas de análise.” (CAMPOS 2018, p. 76)

É uma combinação de conhecimento da Bíblia (como critério último e necessário), aliado com o discernimento espiritual aberto inclusive ao reconhecimento do mal pelo ouvir a voz de Deus interna e audivelmente, visões ou conhecimento de manifestações extraordinárias. Claro, tudo isso submetido ao juízo das Sagradas Escrituras. Ele também reitera que Deus fala de muitas maneiras e todas elas, para verificar sua autenticidade- têm que ter seu correlato nas Escrituras ao menos um sentido global.  (CAMPOS 2018, p. 78)

Bernardo também fala dos sonhos. Deus fala através de sonhos hoje em dia? Sim, definitivamente! Se soubermos interpretar os sonhos numa perspectiva cristã, poderemos ver mensagens espirituais em nossos sonhos. (CAMPOS 2018, p. 79) Esse aspecto se perdeu dentro da hermenêutica evangélica, mas dentro da hermenêutica pentecostal penso que precisaria ser trabalha de forma mais ampla. Antes mesmo de estudar teologia, pela simples leitura bíblica, eu lembro de antes de dormir, pedir para Deus abençoar meus sonhos, inclusive, me revelando, quando necessário, coisas pertinentes ao meu universo pessoal. E assim aconteceu, várias vezes! Sonhos proféticos existem, porém, nem todo sonho é profético, portanto, tenhamos cuidado! Campos alerta: “Considere que nem todo sonho é uma mensagem profética ou uma advertência. Ore por seus sonhos. Se estiveres confundido ou confundida acerca de um sonho, peça conselho a Deus.” (CAMPOS 2018, p. 82) Consultar a Deus e às Escrituras sempre é o melhor caminho!

Mais uma vez Bernardo centraliza a atenção para as Escrituras quando diz que “dar muita importância aos sonhos pode conduzir os crentes a deslocar a Bíblia a um segundo plano ou o que seria pior, querer confirmar sua mensagem mediante sonhos atuais. Em certa ocasião, um dos meus alunos do Seminário me disse. ‘Agora sei que o relato da mulher e o dragão, de Apocalipse 12 é verdadeiro.’ ‘Por quê crês isso agora?’, lhe perguntei. ‘Porque à noite tive um sonho que me confirmou esse relato’, respondeu. ‘É ao contrário’, repliquei: ‘A Bíblia confirma que teu sonho é verdadeiro, e não ao contrário.’ Nossos sonhos, por mais revelados que sejam, ocupam um lugar secundário na interpretação da Bíblia. Sua interpretação depende dos conteúdos e mensagens da Bíblia.” (CAMPOS 2018, p. 80)

E reafirma seu compromisso com a proeminência das Sagradas Escrituras:

“Uma coisa que devemos ter em mente é que a Bíblia está completa, havendo coberto tudo o que necessitamos saber para nossa salvação. Isto não quer dizer que Deus já não faça milagres ou que não fale através de sonhos e visões hoje em dia. A diferença é que Deus já tem revelado o caminho que Ele elegeu para tratar com o ser humano desde agora até a eternidade, e esse caminho é Cristo e o sabemos pela Bíblia. Qualquer coisa que Deus disse, já seja em sonhos, visões, ou mediante uma voz interna ou externa (audível), terá que estar em completo acordo com o que Deus já tem revelado em Sua Palavra. Os sonhos não podem relegar a um segundo lugar a autoridade das Escrituras. Novamente, se Deus for falar a uma pessoa em sonho, Sua mensagem estaria em perfeito acordo com Sua Palavra. Nossa crença na inspiração, autoridade e suficiência da Escritura, não tira o fato de que Deus fala excepcionalmente através dos sonhos na atualidade. Se você tem um sonho e sente que Deus te deu, examine com muito cuidado a Palavra de Deus e assegure-se que seu sonho está em total acordo com a Escritura, ou pelo menos que não se opõe a ela.” (CAMPOS 2018, pp. 81,82)

Logo, Campos propõe uma hermenêutica do Espírito que leve em conta as experiências espirituais. No caso dos sonhos, a interpretação deve buscar respaldo primariamente nas Escrituras e com apoio secundário de experiências cristãs similares. No geral, temos que buscar analogias com os símbolos da fé cristã e seu sentido na Bíblia. (CAMPOS 2018, pp. 82,83)

Conclusão: A Hermenêutica do Espírito do Bernardo Campos é uma proposta para muitos, estranha à Hermenêutica Pentecostal, mas como vimos neste pequeno artigo, há conceitos interessantes que podemos extrair e se apropriar para aperfeiçoar as ferramentas que já temos. Vimos que o autor também defende que a Hermenêutica do Espírito passa por uma leitura exegética da Escritura (interpretação científica), porém, vai além dela pois supõe uma experiência-atualização-fundante do sentido do texto buscando seu sentido profundo ou espiritual (CAMPOS 2018, p. 87) e que ela se apresenta à luz da Palavra (CAMPOS 2018, p. 88) e no fim, Campos fala que em outra oportunidade poderíamos discutir a cientificidade de uma HDE e sua validação para às Ciências Bíblicas. Sua fundação como método, contudo, deverá sustentar-se em uma consulta à tradição mais ampla da igreja, à história da teologia e à moderna ciência bíblica, em correlação com a discussão hermenêutica contemporânea. (CAMPOS 2018, p. 88) De qualquer forma, as observações do Bernardo podem ser úteis e agregadores à hermenêutica pentecostal que a cada dia se aperfeiçoa. Que o Espírito continue nos ajudando em tudo! Amém!

Bibliografia

CAMPOS, Bernardo. Hermenêutica do Espírito- Uma proposta para a hermenêutica pentecostal . São Paulo: Recriar, 2018.
HORTON, Stanley M. (Editor). Teologia Sistemática- Uma Perspectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
SILVA, Esequias Soares (Org.). Declaração de Fé das Assembleias de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.
STARLING, David I. Hermenêutica- A Arte de Interpretação ensinada pelos próprios autores bíblicos. Rio de Janeiro : CPAD, 2019.



[1] No nosso caso, o que propus no artigo é algo novo ainda para muitos pentecostais brasileiros, mas bem articulado/estruturado há pelo menos 40 anos pelos pentecostais norte-americanos.

[2] A impressão que Bernardo passa por toda a obra sobre a relação entre os escritores bíblicos e os cristãos posteriores é que os primeiros estão debaixo da inspiração divina, enquanto que o segundo grupo, da iluminação. Se isto é o que Bernardo quis passar, não ficou claro, mas creio que há espaço para afunilamentos da ideia.

[3] Método Histórico Gramatical e Histórico Crítico.

[4] O Quadrilátero Wesleyano diz respeito prática interpretativa metodista de usar quatro fontes diferentes para chegar a conclusões teológicas. São elas: Escritura, Tradição, Razão e Experiência. Saiba mais em https://www.theopedia.com/wesleyan-quadrilateral. Acesso: 02/04/2020 às 22:25.

2 comentários:

  1. A hermenêutica do Espírito, nada mais é,do que a própria mediação do Espírito ao espírito humano, para obtermos acesso a conhecimento que não estão explícitos nas Escrituras. Aí entra os sonhos,o discernimento de espíritos, etc. Tudo debaixo das Escrituras,sendo ela o aferidor de tudo. Muito bom o artigo!

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  2. É isso aí!

    Muitos não compreende tanto a continuidade de "Lucas-Atos", quanto a diferença da teologia Lucana com a teologia paulina.

    Um da ênfase, ao desenvolvimento das obras do Espírito na igreja por efusão. E o outro, pela santificação e o progresso espiritual dos membros do corpo.

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